No início de março de 2024, o Tribunal da Cidade de Moscou determinou a proibição da obra Novo Testamento: A Tradução da Restauração, distribuída pela Local Church (Igreja Local), grupo cristão fundado pelo pregador chinês Witness Lee (1905–1997). A decisão, divulgada por veículos de imprensa russos, classificou a publicação como “material extremista” e ordenou sua inclusão no Registro Federal de Materiais Proibidos da Federação Russa.
Fundamentação da proibição: um ataque à liberdade religiosa
A justificativa do tribunal baseia-se na alegação de que a obra apresenta uma “versão não canônica do Novo Testamento” e promove conteúdo com “sinais de exclusivismo religioso”. Na prática, esse termo é usado pelo governo russo para criminalizar grupos religiosos que não fazem parte das religiões reconhecidas oficialmente, colocando-os sob suspeita de atividades “terroristas” ou “desestabilizadoras”.
A decisão menciona explicitamente que a tradução do Novo Testamento da Igreja Local supostamente desafia a hegemonia da Igreja Ortodoxa Russa (ROC), a maior denominação cristã do país e um dos pilares de sustentação política do regime de Vladimir Putin. Segundo os juízes, o texto “promove interpretações que buscam se estabelecer como superiores às tradições cristãs reconhecidas”, algo que na Rússia pode ser tratado como crime.
Leis repressivas e histórico de perseguição
A proibição está amparada na Lei Federal nº 114-FZ, em vigor desde 2002, que permite ao Estado classificar organizações e publicações religiosas como "extremistas" sob a justificativa de proteger a estabilidade nacional. Desde 2017, quando a Suprema Corte russa proibiu as Testemunhas de Jeová, o número de materiais religiosos classificados como "extremistas" ultrapassou 580, segundo dados do Serviço de Monitoramento de Liberdade Religiosa.
A Igreja Ortodoxa Russa tem desempenhado um papel central na consolidação dessas medidas. Em 2020, o patriarca Kirill, líder máximo da ROC, declarou apoio irrestrito à política religiosa do Kremlin, que segundo analistas busca reforçar a identidade cristã ortodoxa como um dos pilares do nacionalismo russo. O discurso de "proteção das tradições espirituais da pátria russa" tem servido de justificativa para perseguição a minorias religiosas.
Reações e sanções severas
Em nota divulgada em 4 de março, o Ministério da Justiça da Rússia justificou a decisão com declarações contundentes:
“Traduções distorcidas da Bíblia, como a de Witness Lee, visam fragmentar a unidade espiritual da Rússia e substituir valores tradicionais por doutrinas sectárias.”
Até o momento, representantes da Igreja Local na Rússia não se manifestaram. Entretanto, em 2023, a sede internacional da denominação, localizada nos Estados Unidos, classificou restrições anteriores do governo russo como “perseguição a minorias cristãs”.
A nova proibição impõe penalidades severas para quem possuir, distribuir ou citar publicamente a tradução do Novo Testamento feita pela Igreja Local. Segundo o Artigo 282.2 do Código Penal da Rússia, a violação pode resultar em multa de até 500 mil rublos (aproximadamente R$ 30 mil) ou reclusão de até quatro anos.
Esse é o segundo caso recente de repressão contra textos cristãos na Rússia. Em setembro de 2023, um tribunal da cidade de Omsk também determinou a proibição de uma edição do Novo Testamento publicada pelas Testemunhas de Jeová, também sob a acusação de "extremismo".
Censura e perseguição religiosa: uma nova cortina de ferro?
A proibição do Novo Testamento traduzido pela Igreja Local reforça o avanço da repressão religiosa na Rússia. Sob a justificativa de manter a estabilidade nacional e preservar a identidade ortodoxa, o governo de Putin tem intensificado o controle sobre as manifestações religiosas, deixando claro que qualquer forma de cristianismo que não se alinhe às diretrizes do Kremlin será silenciada.
Com isso, a história se repete: em nome da segurança nacional, a liberdade religiosa é pisoteada e a palavra de Deus é censurada. A proibição de uma versão do Novo Testamento pode ser apenas mais um passo rumo à total supressão da diversidade cristã na Rússia de Putin.
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